Muito além da Internet

Muito além da Internet.

Zarcillo Barbosa

Quem não tem disciplina para o trabalho precisa criar algum tipo de blindagem contra as distrações supérfluas. Victor Hugo, autor de clássicos como “Os miseráveis”, era um desses dispersivos. Precisava ser contido para não se desviar do trabalho de elaborar as obras-primas que o transformariam no maior escritor da França. Morava defronte a Place des Vosges, ponto de encontro da aristocracia parisiense no século 19. Era forte a tentação de largar tudo e descer aos jardins da praça para bater papo com os amigos e admiradores.

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Como medida de contenção, adquiriu o hábito de escrever nu, e de pé. Seu mordomo tinha ordens expressas de esconder as roupas do patrão até que ele tivesse terminado a sua jornada. Com objetivo semelhante, na Universidade da Carolina do Norte acabam de inventar um programa que permite ao usuário bloquear o acesso do seu computador à Internet por um período de até oito horas. O programa, muito a propósito, foi batizado de Freedom (liberdade) - liberta-o das distrações e permite que você recupere o tempo para escrever, analisar, criar.

Inspirei-me a esta abordagem quando fui à redação do JC para levar um texto, impossível de ser enviado por meios eletrônicos porque houve uma pane geral na Embratel. Senti o quanto é importante os meios eletrônicos para quem tem o dever de informar os leitores e, ao mesmo tempo, retroalimentar o sistema comunicacional. Parece que nada mais funciona sem a Internet. Outro dia almocei com dois executivos que colocaram sobre a mesa do restaurante duas duplas de iPhone e BlackBerry . De vez em quando, a conversa era interrompida, sem cerimônia, para que pudessem ler mensagens recebidas e respondê-las. Enquanto isso, eu me distraia com o filé au poivre para aguardar o reinício da conversa. A editora-chefe Giselle Hilário me contou que precisou tocar os filhos para fora de casa para que saíssem da frente do computador. Pelo menos existe um lado positivo nas novas tecnologias. O computador é um instrumento por meio do qual é possível produzir e editar imagens. Em sua tela correm palavras e linhas escritas e, para usar um computador, é preciso saber ler e escrever muito bem. O hipertexto é uma rede multidimensional ou um labirinto em que cada ponto ou nó contém várias informações que potencialmente nos levam a mais informações. Basta clicar. Diante dessa virtual-realidade, a pergunta que se faz é: “Será que os meios impressos vão acabar?”. Não conheço ninguém que leu “Guerra e Paz” no computador, mas fiquei espantado quando vi as pessoas deitadas na areia da praia lendo pelo tablet. O que se espera é que o leitor, depois de escolher, pelo computador, o que quer ler dentro dos 200 milhões de impressos na Biblioteca do Congresso, em Washington, aperte um botão e a máquina imprima e encaderne um único exemplar, usando a fonte que o leitor desejar. O mercado editorial, sem dúvida, irá se modificar. Hoje, existe uma nova poética hipertextual segundo a qual mesmo um livro feito para ler, mesmo um poema, pode ser convertido num hipertexto. Quando, em “Guerra e Paz”, Tolstói fala em Napoleão, o leitor pode clicar no nome e terá a biografia e a imagem do personagem-real. E, se ele quiser, pode mudar também a história fazendo com que a pessoa maravilhosa do príncipe Andriei não morra e que ele e Natacha vivam juntos para sempre. Os livros digitais de história já remetem o leitor para documentários em vídeo e sons. Isto é hipertexto.

Agora, o que se teme é o resultado de estudos pedagógicos que revelam a perda da capacidade de pensar e refletir das pessoas, de forma independente, sem esses aparelhos. E a dispersão que isso representa. Umberto Ecco chamava a atenção para três tipos de memória que temos hoje. A primeira é orgânica, que é a memória guardada nos neurônios e recônditos do nosso cérebro. O segundo tipo é mineral, porque a memória eletrônica dos computadores tem por base o silício. O terceiro é a memória vegetal, representada pelo papel. Há milênios era representada por tijolos de argila, portanto, também mineral. As coisas se modificam, mas continuam. As bicicletas continuam rodando mesmo com veículos muito mais rápidos. O importante não é se preocupar com o que vai substituir o quê. Este é um problema virtual, não-real. O primordial é que nossos filhos reservem tempo para pensar autonomamente e criar, mesmo que para isso tenhamos que esconder suas roupas ou expulsá-los de casa. 

[O autor, Zarcillo Barbosa, é jornalista e colaborador do JC].
[Fonte, JCNET].

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